A emigração como mote do sentimento romântico em Rosalía de Castro

Ghabriel Ibrahim

Aluno de Literatura Galega I e Introdução à Cultura Galega na UERJ

O século XIX na Galícia foi bastante conturbado. Durante a primeira metade deste século, a população galega mostrava crescimento acentuado, representando quase 12% da população total da Espanha. Este crescimento, porém, se dava sobre um modelo insustentável, visto que a Galícia não demonstrava diversidade econômica e ainda caminhava no âmbito industrial. Embora produzisse linho, o consumo do material de proveniência galega sofreu duro golpe a partir do início da importação de produtos ingleses. Era uma sociedade majoritariamente rural, e as técnicas para produção no campo eram pouco modernizadas, além da existência de uma série de impostos cobrados sobre a produção campestre, os chamados “trabucos”. Além disso tudo, a Galícia demorou a ser incluída na malha ferroviária espanhola, sendo incorporada de maneira relevante apenas em 1883.

A crise era iminente, e nos anos 50 chega com muita força. De 1852 a 1855, a Galícia sofre com chuvas torrenciais, geadas e infestações constantes de pragas, o que, em uma sociedade rural como a galega da época, é capaz de instaurar o caos. Com as colheitas sendo afetadas de maneira intensa, inicia-se um período de fome. No ano de 1853, o governo espanhol legalizou a emigração, o que acabou por gerar um movimento migratório massivo, sobretudo para a América, por parte dos galegos. Somado ao movimento legal, havia também a imigração ilegal, tamanho o desespero por parte dos cidadãos de evadir o pagamento dos trabucos, que chegaram a triplicar durante o período, bem como a vontade de escapar do recrutamento forçado. Estima-se que 340 mil galegos, em sua maioria do sexo masculino, incluindo crianças de até 12 anos deixaram seus lares em busca de uma melhora na condição de vida e não retornaram.

Na segunda metade do século XIX também tem início um movimento de resgate da cultura e da língua galega. O “Rexurdimento” buscava revitalizar o galego como instrumento de expressão social e cultural, além de reavivar sentimentos nacionalistas adormecidos durante o período dos Séculos Escuros. Ocorre paralelamente à “Renaixença” catalã, que possuía propósito similar. Embora antes de 1863 houvesse publicações na língua galega no século XIX, estas foram consideradas obras precursoras do movimento, que geralmente tem seu início apontado neste ano, com a publicação de “Cantares Galegos”, de Rosalía de Castro.

Rosalía, filha de um membro do clero e uma fidalga solteira de poucos recursos, cresceu na Galícia e lá aprendeu seu idioma e conviveu com a cultura do país. Não foi privada de educação formal, e em 1856 se mudou para Madrid, onde conheceu Manuel Murguía, outro escritor fundamental no Rexurdimento galego, com quem se casou. Em Madrid escreveu sua primeira grande obra, “Cantares Gallegos”, de importância já mencionada. A obra teve grande influência do Romantismo e da cultura popular. Não detinha grande complexidade: a obra contava com um vocabulário simples, e não tinha grandes construções imagéticas a partir de figuras de linguagens de difícil compreensão. Parte dos poemas presentes nessa compilação era quase um “quadro de costumes”, descrevendo de maneira leve e poética hábitos do povo galego. Disso se constituía sua tentativa de fazer rutilar sua cultura: fazendo uma literatura de qualidade com temas de intensa relação com o povo.

Era também uma mulher muito ligada em questões políticas e sociais, e portanto não poderia deixar de abordar a questão das emigrações em seus textos. O poema “Adiós, ríos” é um bom exemplo desse tipo de literatura que produziu.

Adiós ríos, adiós fontes
adiós, regatos pequenos;
adiós, vista dos meus ollos,
non sei cándo nos veremos.

Miña terra, miña terra,
terra donde m’eu criei,
hortiña que quero tanto,
figueiriñas que prantei.

Prados, ríos, arboredas,
pinares que move o vento,
paxariños piadores,
casiña d’o meu contento.

Muiño dos castañares,
noites craras do luar,
campaniñas timbradoiras
da igrexiña do lugar.

Amoriñas das silveiras
que eu lle daba ó meu amor,
camiñiños antre o millo,
¡adiós para sempre adiós!

¡Adiós, gloria! ¡Adiós, contento!
¡Deixo a casa onde nacín,
deixo a aldea que conoso,
por un mundo que non
vin!

Deixo amigos por extraños,
deixo a veiga polo mar;
deixo, en fin, canto ben quero…
¡quén puidera non deixar!

(…)

O poema segue por mais oito estrofes, mas para fins ilustrativos essa primeira parte já será bem útil. Já na forma se faz claro o caráter popular da poesia de Rosalía de Castro, sendo a primeira estrofe constituída de versos octossílabos remetendo à produção lírica folclórica. Além disso, nessa primeira parte há apenas quartetos, e em todos eles se repete a rima entre o segundo e o quarto verso. Isso confere ao poema simplicidade, e faz deste um texto capaz de tocar mesmo os leitores inexperientes como era o caso da maioria do povo galego da época. Mostra também que o idioma galego é tão capaz de provocar um impacto estético e emocional como qualquer outro, grande conquista da autora. Nas palavras de Luis Seoane:

 “…la poesía de Rosalía de Castro, poeta total sin lugar a duda, capaz de apoderarse de sentimientos individuales  que conmoverán a la consciência colectiva, cumpliendo así la conditio sine qua non de la creación artística esencialmente dirigida a la comunicación, en otras palabras, su función social. “

No seu segundo livro, publicado em 1880 (“Follas Novas”), Rosalía atinge outra profundidade poética, com uma lírica mais intimista e esquemas rítmicos e sonoros mais complexos. Isso confere um caráter mais universal à poesia presente neste livro, já que a obra em “Cantares Galegos” trazia inúmeras referências à arte popular galega em diversos campos. Mantém-se aqui a preocupação com o social por parte da autora, e o tema da emigração segue servindo de mote para a produção literária. Neste livro há uma seção dedicada a este tema intitulada “As viudas d’os vivos e as viudas d’os mortos”, em que a expressão “Viudas d’os vivos” é cunhada e desde então é comumente referenciada quando se trata de emigração na Galícia no século XIX. Um exemplo de interessante abordagem do assunto pode ser visto em “A gaita galega”, poema do qual transcreverei um fragmento:

[IV]

Probe Galicia, non debes
chamarte nunca española,
que España de ti se olvida
cando eres, ¡ai!, tan hermosa.
Cal si na infamia naceras,
torpe, de ti se avergonza,
i a nai que un fillo despreza
nai sin corazón se noma.
Naide por que te levantes
che alarga a man bondadosa;
naide os teus prantos erixuga,
i homilde choras e choras.
Galicia, ti non tes patria,
ti vives no mundo soia,
i a prole fecunda túa
se espalla en errantes hordas,
mentras triste e solitaria
tendida na verde alfombra
ó mar esperanzas pides,
de Dios a esperanza imploras.
Por eso anque en son de festa
alegre á gaitiña se oia,
eu podo decirche:
Non canta, que chora.

No poema, a autora usa sua sensibilidade e personifica Galícia, caracterizando-a como uma mãe saudosa, triste, e cada vez mais solitária devido ao fenômeno migratório. Quando diz “Galícia, ti non tes pátria”, afirma o descaso e abandono da Espanha com ela, abandono este que não se verifica no momento da cobrança de impostos, por exemplo. Reforça a tristeza que o processo da migração causa nessa “mãe”, tão intensa que faz com que a gaita galega, símbolo cultural, tenha seu som ligado ao som de um choro.

É interessante notar o sucesso que esse livro fez fora da Galícia, sobretudo devido ao grande número de imigrantes galegos em países como Cuba, por exemplo, local onde Rosalía se fez muito reconhecida no período. O poder catártico de sua obra é inegável, uma vez que atinge inclusive pessoas que não consumiam arte que não aquela vinda do povo – mais popular – mas também atinge intelectuais e estudiosos, ilustrando a potência da obra da autora. Além disso, é importante notar que, embora o sentimento nacionalista fosse comum na época e portanto muito utilizado como inspiração poética, Rosalía utiliza de sua sensibilidade como mãe sofrida e mulher para criar uma nova de despertar este sentimento em seus leitores: personificando sua nação, sensibiliza seus nativos quanto ao seu papel na construção de uma identidade nacional forte, dando ao povo papel de protagonista nesta situação. Com isso, demonstra entender a situação política de seu lugar, há muito maltratado e desrespeitado, com um povo ferido, pouco a pouco docilizado, quase naturalizando a triste realidade vivida, e por isso era fundamental que fosse reavivado nele o sentimento não só de pertencimento à pátria, mas também o sentimento de que é importante para que tal conceito exista.

Referências:

Graña, J. L. “Adiós ríos, adiós fontes”: Rosalía de Castro y los galegos de Cuba

Porrua, M. C. El tema de la emigracion em la poesia de Rosalia de Castro y su proyeccion em dos poetas galegos

González López, Emilio (2012 [1986]). “Achegamento lírico e alonxamento dramático: o tema da emigración”. En Actas do Congreso Internacional de estudios sobre Rosalía de Castro e o seu tempo (i). Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega / Universidade de Santiago de Compostela, 317-326. Reedición en poesiagalega.org.Arquivo de poéticas contemporáneas na cultura.

<http://www.poesiagalega.org/arquivo/ficha/f/1681&gt;.

Uma consideração sobre “A emigração como mote do sentimento romântico em Rosalía de Castro”

  1. Olá Gabriel, como ai?
    Sou aluna de História da Universidade Católica do Salvador e faço uma pesquisa neste ano sobre os galegos na Bahia.
    Gostei do dado levantado em seu texto sobre o percentual galego que correspondia a 12% de toda a Espanha. Por gentileza amigo, poderia me dizer a fonte que encontrou este dado? Gostaria de citá-lo em minha pesquisa.

    Agradeço a sua humilde atenção!

    Att: Ana Manuela.

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