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Estudantes brasileiros/as no Curso de verão de língua e cultura galegas

Hoje dia 1 de julho começa na Galícia o Curso de língua e cultura galegas para estrangeiros.  A Universidade do Estado do Rio de Janeiro não pode estar melhor representada neste ano, e três são os/as estudantes e pesquisadores/as que vão participar nesta edição:  Thayane Gaspar,  Fernanda Lacombe Sebastião Lindoberg.

Thayane Gaspar é  graduada em jornalismo e escritora  de romance de ficção em português brasileiro. Assim, publicou Princesa de Gelo (2012) e Mitral: o esconderijo do mundo (2013), além de contribuições em obras coletivas. Ademais , cursa Letras na UERJ, onde foi aluna das quatro matérias de língua, literatura e cultura galega oferecidas no Instituto de Letras. Como pesquisadora, tem trabalhado com o olhar na literatura medieval, apresentando a sua pesquisa no I Congresso Brasileiro de Estudos Galegos, que teve lugar neste 2015 em Salvador de Bahia, e nas Jornadas das Letras Galegas 2014 e 2015 acontecidas na UERJ. Também é habitual colaboradora no blog Quilombo Noroeste, onde já publicou as suas pesquisas A poesia do olhar medievalO feminino nas identidades brasileira e galegaO celtismo na literatura galegaGalícia: a terra nai do adeus e a sua criação literária Árvore sem raízes. Atualmente é bolsista de Iniciação Científica em estudos de identidade, e a sua pesquisa é relacionada com a criação da identidade galega através do celtismo na obra de Cabanillas, e a sua comparação com a obra literária de vários poetas portugueses e irlandeses.

Fernanda Lacombe é estudante de Letras na UERJ, onde foi aluna das quatro matérias de língua, literatura e cultura galega oferecidas no Instituto de Letras. Ademais, faz pesquisa sobre os contos populares galegos dos Séculos Escuros, e as representações da mulher neles. Tem apresentado as suas pesquisas em vários congressos neste último ano: XI Congreso Internacional de Estudos Galegos em Buenos Aires, e I Congresso Brasileiro de Estudos Galegos em Salvador de Bahia e também nas Jornadas das Letras Galegas 2014 e 2015 acontecidas na UERJ. Colaborou no Quilombo Noroeste com Os contos populares galegos e brasileirosA representação feminina nos contos populares galegos e brasileiros e História em quadrinhos: a história da língua galega. Atualmente é estudante de intercâmbio na Universidade de Coímbra (Portugal).

Sebastião Lindoberg cursa atualmente Mestrado em Literatura Portuguesa na UERJ. Possui graduação em Letras pela Universidade Veiga de Almeida (2011), Pós graduado (lato sensu) em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (2012) e Língua Latina (UERJ-2014). Atualmente Graduando em Língua Latina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa do século XX. Tem interesse em pesquisas que relacionem Filosofia e Literatura, com especial enfoque à temática Teopóetica; bem como as relações entre Religião e Sociedade. Atualmente é professor concursado da Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro. Com relação á Língua e Cultura Galegas, Sebastião fez o Curso de Galego para estrangeiros também no ano 2014.

Desde o Programa de Estudos Galegos desejamos tudo de bom nesta experiência a Thayane Gaspar, Fernanda Lacombe e Sebastião Lindoberg. Acreditamos que com a sua estadia na Galícia e a realização do Curso de verão vão continuar afiançando a sua pesquisa e a sua formação no amplo mundo dos estudos galegos. E, aliás, vão contribuir a um melhor conhecimento da Galícia pelos brasileiros/as, e do Brasil pelo povo galego, algo também fundamental para aumentar o contato entre dois países que tem tanto em comum.

Mais informação sobre o Curso de língua e cultura galegas para estrangeiros, organizado pela Real Academia Galega:

Os Cursos de lingua e cultura galegas para persoas de fóra de Galicia veñen celebrándose de maneira ininterrompida desde o verán de 1988. Nos primeiros anos foron organizados polo Instituto da Lingua Galega (ILG) da Universidade de Santiago de Compostela, co apoio da Dirección Xeral de Política Lingüística da Consellería de Educación da Xunta de Galicia. A partir de 1993 a devandita Dirección Xeral (hoxe Secretaría Xeral) estableceu un convenio coa Real Academia Galega (RAG), a través do seu Seminario de Lexicografía, e coa colaboración do ILG, para as tres institucións organizaren conxuntamente uns cursos que teñen como finalidade proporcionarlles ás persoas participantes a oportunidade de se familiarizaren coa lingua galega e coa realidade sociocultural de Galicia.

Estes cursos están dirixidos a alumnado e profesorado universitario que estea interesado na lingua, na literatura e na cultura galegas e, de maneira particular, o vinculado aos centros de estudos galegos das universidades de fóra de Galicia, aínda que están abertos a calquera persoa maior de idade de fóra de Galicia.

O programa dos cursos inicial e medio consta de clases de comprensión e expresión escrita e oral. O curso superior de lingua e literatura galegas constará de varios seminarios, que tratarán sobre os seguintes temas: problemas de lingüística galega; textos e autores da literatura galega contemporánea; formación e historia social da lingua galega; variación e cambio lingüístico no galego actual.

Ao mesmo tempo, están programadas actividades de ampliación cultural, que consistirán fundamentalmente en conferencias sobre literatura, historia e outros eidos da realidade sociocultural de Galicia, así como na proxección de películas e documentais. Estas actividades realizaranse de maneira conxunta para o alumnado de todos os niveis.

Estes cursos contribuíron de maneira moi importante a que hoxe a lingua e a literatura galegas teñan presenza en moitas universidades non só de Europa, senón tamén de América, Asia e Australia, e serviron de impulso para o estudo e a investigación sobre a cultura galega en todo o mundo. Esa presenza internacional, xunto cos moitos centos de persoas de moi diferentes nacionalidades que se expresan con toda naturalidade e normalidade en galego cando visitan Galicia, constitúe tamén un factor moi importante de prestixio para a nosa lingua e para a nosa cultura e, por tanto, un elemento de normalización moi relevante.

A representação feminina nos contos populares galegos e brasileiros

Fernanda Lacombe

Aluna de Literatura Galega I na UERJ e pesquisadora

INTRODUÇÃO

Em Os arquétipos e o inconsciente coletivo, o psicanalista austríaco Carl G. Jung divide e o inconsciente humano em pessoal e coletivo. O primeiro possui caráter subjetivo, enquanto que o segundo possui caráter universal. Constituído de imagens presentes em todo o tempo e todo o lugar, o autor o compara ao superego de Sigmund Freud. Assim como neste se encontram as normas e regras da vida em sociedade, estas imagens – os arquétipos – estão por trás do comportamento de todo o ser humano.

Inicialmente inconscientes, os arquétipos passam por uma conscientização de diversas maneiras, entres elas os contos de fadas. Sendo universais, os mesmo arquétipos genéricos estão presentes em todas as narrativas humanas, mas são expressos de modo particular em cada cultura. A análise comparativa dos contos brasileiros e galegos permite perceber semelhanças e diferenças nas representações do arquétipo feminino, e desse modo semelhanças entre as duas culturas, fato que confirma uma certa herança galega no Brasil.

De acordo com o senso comum, os contos de fadas são narrativas infantis com o objetivo moralizante. Porém, suas origens remontam às camadas mais baixas da população. Tanto no Brasil quanto na Galícia, uma parcela significativa da povo não tinha acesso à cultura socialmente valorizada. Além disso, no caso da Galícia, as narrativas populares foram uma das únicas formas de literatura produzida em língua galega durante os “séculos oscuros”1.

Os contos galegos analisados foram retirados da coletânea Contos populares lançada em 1983 na Galícia e organizada por Maruxa Barrio e Enrique Harguindey. Para comparação com as narrativas brasileiras, foram selecionados os contos recolhidos por Silvio Romero e Câmara Cascudo, referidos na bibliografia desse artigo. Todas as narrativas escolhidas são de encantamento, devido ao rico material de símbolos e imagens arquétipicas contidas neste gênero.

Associados diretamente ao ambiente doméstico, e consequentemente feminino, muitos dos contos populares são metáforas que tratam do amadurecimento de crianças e jovens. No caso das mulheres, o contato com estas histórias é essencial para o desenvolvimento da psique feminina e transformação da criança na mulher adulta. Seu estudo nos permite uma melhor compreensão dos hábitos das mulheres de séculos anteiores e sua maneira de transmitir conhecimento entre gerações.

O XOGADOR E A FILLA DO DEMO: O AMADURECIMENTO DA SEXUALIDADE E A ESPERA.

O primeiro conto a ser analisado, O xogador e a filla do demo, possui uma personagem feminina que começa discreta, mas ganha espaço ao longo da narrativa. Este conto inicia-se com o jogador do título, um homem que vende sua alma ao diabo em troca de um baralho que permite que ele ganhe sempre. Ao cabo de cinco anos, o jogador precisa se apresentar ao diabo para entregar sua alma. Graças à intervenção do destino, ele conhece Brancaflor, filha do demo, que irá auxiliá-lo.

No primeiro momento em que surge, percebemos a importância de Brancaflor, pois é a única personagem que possui nome próprio, ao contrário dos outros personagens identificados por títulos genéricos – o jogador, o diabo, a mulher.

Depois de vencer todos os desafios propostos pelo diabo – com o auxílio da moça – o jogador e a filha do demo fogem juntos, porém o pai os segue. Durante a fuga, Brancaflor, que é dotada de poderes mágicos, transforma-os em diferentes elementos para despistar o diabo. Primeiro, ela transforma a si mesma em um cacho de uvas e o jogador em um vendedor. Depois, toma a forma de uma igreja e seu amado, a de um padre.

Estes elementos católicos, assim como o nome de Brancaflor – que sugere beleza e pureza – contrastam com sua filiação. Do mesmo modo, a transformação final da moça em braço de mar, para enganar seu pai, representa sua estreita relação com a natureza.

Como personagem da narrativa popular, Brancaflor representa as mulheres do campo. A junção de elementos pagãos com cristãos representa a dualidade destas mulheres, divididas entre as tradições campesinas e os costumes cristãos. De fato, nos contos fica claro que a religião do povo possuía uma série de características e superstições próprias. Não é de se espantar que a filha do diabo possa ser heroína de uma narrativa, do mesmo modo que, no Brasil, o diabo pratique boas ações em alguns contos.

Brancaflor também encarna uma imagem típica da mulher galega no momento seguinte da história. Depois de fugirem ela e o jogador do diabo, a moça pede a seu noivo que não abrace ninguém, pois se o fizesse o jovem a esqueceria. O rapaz não segue sua advertência. Assim, esquecida por seu noivo, Brancaflor torna-se costureira e todos da vizinhança comentam sua beleza.

Dentro do imaginário galego, a figura da tecedeira – aqui simbolizada pela costureira – já é uma imagem comum. Desde Penélope aguardando Ulisses, o que remete ao legado cultural grego herdado pela península Ibérica, até as componesas que esperam seus maridos que imigraram e as moças das cantigas de amigo que aguardam o retorno do amigo (namorado) que partiu em missão com o rei, a espera e a fiação do tempo estão entrelaçados. O ato de tecer e o próprio fio possuem múltiplos significados, desde a passagem do tempo e a sexualidade, até o próprio ato de contar histórias.

Estas três significações se aplicam a este conto. Enquanto aguarda que o jogador se lembre dela, Brancaflor não apenas costura, mas recria em sua memória e história dos dois para mantê-la viva. E, ao mesmo tempo em que faz seu trabalho de costureira, atrai os jovens da região.

Como dito na introdução, os contos de encantamento não são narrativas infantis. Consequentemente, detalhes da vida comum como a sexualidade estão presentes, metafórica ou explicitamente.

O ato de fiar também como representação da sexualidade também é encontrado no conto brasileiro A princesa do sono sem fim, retirado da recolha de Câmara Cascudo. Amaldiçoada quando criança, a protagonista pica seu dedo em um fuso ao completar quinze anos, e cai em um sono de muitos anos. Inicia-se um período de espera, causado pela iniciação precoce na sexualidade, metaforizada no fuso e fiar. Deste modo, ela deve aguardar – em estagnação – até o momento certo de se relacinar com o sexo oposto, representado pela chegada do príncipe ao castelo.

Brancaflor também passa por este momento de espera, seduzindo os jovens da região – entre eles o próprio jogador desmemoriado – sem realizar nenhum tipo de relação sexual com nenhum deles. No momento adequado, ela abandona seu posto de espera e revela a verdade a seu noivo, casando-se com ele no final.

O próximo conto também tem com tema o amadurecimento. Mais precisamente, o do desenvolvimento da capacidade feminina de detectar seu predador.

O CONTO DO LAGARTO: O FIM DA INOCÊNCIA E O NOIVO PREDADOR

Afirmar que os contos de encantamento não possuíam um objetivo inicial de moralização não é o mesmo que excluir qualquer forma de ensinamento por parte deles. Como muitas outras formas de cultura popular, estes contos estão repletos de ensinamentos, porém não de maneira óbvia ou direta. Um exemplo disto é o segundo conto galego a ser analisado.

Narra o conto que um caçador está realizando seu ofício quando se depara com um enorme lagarto. Sua postura inicial é de matá-lo, mas a criatura diz que pode fazê-lo muito rico, basta que o homem lhe entregue uma de suas filhas. O homem volta para a casa e conversa com as meninas. A única que aceita é a mais nova que diz não se importar com o que pode lhe acontecer, desde que sua família fique rica.

A menina é levada então ao lagarto, que lhe entrega uma concha e determina uma tarefa: deve buscar trabalho por um ano, e então retornar a seu encontro. A menina parte e passa por uma série de peripécias até que retorne para a criatura.

Talvez seu comportamento de desapego seja encarado de maneira altruísta ou até solidária. Porém, representa a atitude de uma mulher jovem, que ainda não é capaz de sondar todos os perigos que a espreitam. No Dicionario dos seres míticos galego, o lagarto é definido como uma criatura venenosa e inimigo natural das mulheres. Diz o dicionário que os lagartos são responsáveis por causar dores de cabeça nelas e por isso, as persegue. Sendo assim, a figura do noivo em forma de lagarto representa um perigo para qualquer mulher, principalmente para aquela que seja muito jovem para perceber os riscos que corre no relacionamento amoroso/sexual.

O noivo-animal é um símbolo recorrente nos contos de fadas e representa não só o ser do gênero masculino, mas também uma força inata na psique feminina, que a aprisiona em seu próprio lado sombrio. A ação desta força se manifesta exteriormente por um período de desânimo e autodestruição. É o predador da pisque também o responsável pela sabotagem a relacionamentos afetuosos e permanência em situações de abuso e opressão, sem que a mulher dê conta disto. Perceber o predador inato da psique é essencial ao amadurecimento feminino, e tem como consequência a capacidade de perceber os predadores da vida.

Nas palavras da Drª Clarissa Estés :

Todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse conhecimento, a muher será incapaz de se movimentar com segurança dentro de sua própria floresta sem ser devorada. Compreender o predador significa tornar-se um animal maduro e pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência ou insensatez” ( ESTÉS, 2014, p.60)

Na coletânea Contos tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, encontramos figura semelhante no conto O noivo lagartão. Diz o conto que um rei e uma rainha queriam muito ter um filho. A rainha rezava todos os dias, a ponto de pedir a Deus que lhe desse qualquer criança, mesmo um lagarto. Em seguida ao estranho pedido, são atendidos, pois a rainha dá à luz um lagarto.

Logo nos primeiros anos, o príncipe aterrorizou as mulheres do reino. Muitas amas de leite foram chamadas, porém ele sempre acabava por feri-las ao mamar. Por fim, uma orfã muito jovem e muito inteligente, chamada Maria, se oferece para o cargo de ama de leite e encontra uma solução: usar um molde de ferro em formato de seio, que impedia o príncipe de feri-la. Alguns anos depois, o lagarto chega à idade de se casar. Os reis oferecem o maior dote possível, porém nenhuma noiva aceita casar com seu filho. Este, então, diz que deseja se casar com Maria, aquela que o havia amamentado. A moça pede três dias para pensar, e então aceita a proposta.

O que Maria e a menina do conto galego possuem em comum é a sua ingenuidade e a pouca idade, seja biológica ou psíquica. As duas jovens não são capazes de perceber o caráter maléfico do lagarto, presente na cultura galega e encontrado também na brasileira.

Nos dois contos, as duas protagonistas precisam passar por uma jornada, um rito de passagem para ganhar conhecimento e vencer o aspecto maléfico de seus noivos. Na narrativa galega, a menina segue seu caminho até chegar a uma casa onde um casal não consegue acalmar seu bebê. Pedindo a ajuda da concha que traz consigo, a moça faz com que a criança se cale e ganha a simpatia dos pais. Mais adiante, ao conseguir emprego de padeira, é assediada por três estudantes das redondezas. De maneira parecida com Brancaflor em O xogador e a filla do demo, a moça concorda em fazer amor com os rapazes, mas, na realidade, pede a concha que os mantenha toda a noite fazendo seu trabaho de assar pães.

A concha é um símbolo de tudo que gira em torno do feminino, sendo inclusive utilizado o termo de maneira pejorativa na língua espanhola. Seu uso como objeto mágico, que auxilia a protagonista do conto, representa a capacidade de a moça tomar conta de si, deixando de ser um instrumento alheio. Ao contrário da menina do início da história, esta agora é dotada de experiência e capaz de não ser um simples instrumento dos homens, mas inclusive usá-los. O encontro com o lagarto, o homem predador, a tornou mais experiente e capaz.

No conto brasileiro, Maria casa-se com o príncipe e na noite de núpcias nota que ele retira sete capas de seu corpo, até assumir a aparência de um homem normal. Ela conta isto a sua sogra no dia seguinte e ela diz que a moça deve ela mesma vestir sete camisas na noite seguinte, e retirá-las conforme o marido tira suas capas. A cada camisa tirada ela deve rezar uma ave-maria, e depois furar o dedo do lagarto com um espinho da coroa do Cristo, dado a ela pela sogra. Este trecho representa um rito de passagem, um momento em que a mulher jovem e inexperiente ganha conhecimento, associado também à simbologia cristã que afasta todo o mal. O casamento em si também representa o encontro com o homem predador, e o conhecimento que advém desta experiência, mesmo que negativa. É graças ao ritual que Maria encara seu noivo de frente, deixando para trás a jovem submissa.

Ambas as narrativas terminam com os noivos se desinfeitiçando. Isto não significa que o caráter animalesco dos temidos lagartos tenha se extinguido, mas após lidar com o marido-animal e amadurecer, as mulheres tornaram-se capazes de distinguir entre o predador e o humano e, por isso, podem alcançar a felicidade.

Em um mundo dominado por homens e que coloca a mulher em posição de submissão diante da família – o pai caçador – ou da sociedade – o rei e a rainha pais do lagarto – estas narrativas eram de extrema utilidade para as jovens prestes a casar-se, realizando escolhas sensatas e sem deslumbrar-se com promessas de riqueza e poder.

SANTA DORA: A INTUIÇÃO FEMININA E O CONTATO COM A NATUREZA.

O último conto a ser analisado, Santa Dora, é mais uma metáfora para a jornada do autoconhecimento feminino, e a importância do contato da mulher com sua intuição interior.

Santa Dora é uma jovem que vivia sozinha com suas irmãs. Um dia, um jovem rei passa por sua casa. A jovem lhe diz que, caso o rei se casasse com ela, lhe daria dois filhos com estrelas de ouro na testa. O rei aceita a proposta, levando Santa Dora e suas duas irmãs para viver em seu castelo. A jovem esposa cumpre sua promessa e dá a luz a gêmeos, um menino e uma menina, enquanto o marido está na guerra.

Invejosas, suas duas irmãs trocam as crianças por dois gatos pretos, e colocam-nas numa caixa rio abaixo. Os bebês são encontrados por um moleiro e sua esposa, e criados pelo casal, que já tinha um filho. Este, porém, não se comparava aos irmãos adotivos que, conforme cresciam, tornavam-se cada vez mais inteligentes e especiais.

Um dia, o irmão chama-os de “atopados”, o que motiva os meninos a questionarem seus pais sobre sua origem. Após ser revelada a verdade, os dois decidem ganhar mundo e chegam ao palácio do rei, seu pai biológico. Os dois passam a viver nos arredores e, no entorno do palácio, criam um belíssimo jardim, que chama a atenção de toda a vizinhaça, incluindo suas tias.

Estas decidem visitar os irmãos e, ao vê-los, reconhecem-nos pela tira de tecido que haviam amarrado em suas testas e ninguém fora capaz de retirar. Em seguida, as tias decidem consultar uma bruxa para saber como tirá-los dali e a muher decide se encarregar da tarefa. A bruxa então visita os irmãos e sugere que eles adornem o jardim com objetos mágicos: uma música harmoniosa, uma fonte preciosa e um pássaro que tudo fala. O irmão consegue buscar os dois primeiros objetos, mas, ao chegar até o pássaro, cai em uma armadilha e precisa ser resgatado pela irmã. Esta consegue trazer seu irmão e o pássaro para casa.Com o jardim completo, os dois recebem a visita do rei e o pássaro lhes revela todo o segredo dos irmãos.

Este conto apresenta a jornada repleta de peripécias encontrada em muitas outras narrativas brasileiras. Apesar de diferirem quanto às tarefas, todos têm em comum uma personagem feminina capaz de superar os homens naquilo que falham. Em narrativas brasileiras, como Maria Gomes e O sargento verde, elas chegam a travestir-se de homens e chamam a atenção por apresentar os valores mais nobres que um rapaz deveria possuir.

Nestas narrativas, as mulheres apresentam uma alta capacidade intuitiva, assim como uma conexão com a natureza ou o místico. Mesmo as figuras femininas, como as tias e bruxas, no fundo estão colocadas para o auxílio da protagonista. São a representação das partes sombrias da psique feminina. E necessárias, portanto, ao desenvolvimento. Afinal, amadurecer não é torna-se um ser perfeito, mas ser capaz de lidar com as piores partes de si mesmo. Por essa razão que muitos contos de fadas começam com a morte ou o abandono da mãe ou do núcleo familiar. É preciso que a menina aprenda a seguir sozinha, e, por isso, precisa enfrentar as piores partes de si mesma. Assim, encontramos as tias que abandonam os sobrinhos, e a família de Maria Gomes que a abandona.

A figura da bruxa é ainda mais relevante. Ela representa todo o conhecimento feminino primitivo, a conexão com o místico e a natureza. No conto brasileiro Dona Labismina, ela é substituída pela cobra, que dentro do imaginário galego está associado ao feminino2. Assim como a bruxa dá conselhos, que parecem prejudiciais mais na realidade trazem à tona toda a farsa das tias, a cobra em Dona Labismina auxilia a protagonista.

Cabe lembrar que tantos os contos brasileiros quanto galegos sofreram influência da religião cristã. Quando seu irmão parte atrás dos objetos mágicos, a filha de Santa Dora recebe um pão que sangra caso o irmão se encontre em perigo. Em um processo semelhante, no conto OSargento verde, a bruxa dá lugar a Nossa Senhora. Percebemos aí a substituição ou a inclusão de símbolos cristãos, sem alterar, porém, o seu conteúdo original.

Em Santa Dora, no momento em que vai buscar o pássaro falante, o menino recebe o conselho de escolher aquele de aparência mais doente e miserável. Entretanto, ao chegar ao castelo onde se encontra o animal, opta pelo mais belo e saudável e acaba aprisionado. Sua irmã, ao contrário, é capaz de compreender a natureza e, por isso, escolhe o animal correto. Em O Sargento verde, a heroína travestida é desafiada a realizar as mais insólitas tarefas e é bem sucedida graças ao auxílio de seu cavalo encantado. Sua condição feminina lhe permite a conexão com o místico, e, assim, pode receber ajuda dele, independente da maneira com que se apresente.

CONCLUSÃO

Desde Sherazade, das Mil e uma noites, o ato de contar estórias está diretamente ligado às mulheres. Após analisar os símbolos contidos em algumas narrativas, percebemos que, além de um momento de lazer, esta prática representa uma resistência feminina. Em ambas as sociedades estudadas, elas – as mulheres – ocuparam uma posição de inferioridade com relação ao homem. Esta postura também era justificada pela visão negativa que a religião cristã apresenta da mulher, substituindo os cultos matriarcais anteriores e bastante fortes na sociedade galega, por exemplo, e associando a mulher à danação da alma masculina.

A transmissão destes contos permitiu a sobrevivência das tradições femininas, e a transmissão de conhecimento através das gerações. Infelizmente, muito de sua natureza foi deturpada em favor de valores capitalistas ou machistas,e para muitas mulheres, os contos de suas antepassadas resumem-se a blockbusters que estream a cada semana nas salas de cinema.

Como foi demonstrado, há muitos símbolos e representações comuns nos contos galegos e brasileiros, o que demonstra uma certa herança galega no Brasil e uma afinidade entre as mulheres das duas culturas. Estas narrativas não são exclusivas das mulheres, mas, ao escutá-las, damos voz a todas as donas de casa, escravas, babás e mulheres do campo que seguem sendo silenciadas ao longo da história das duas nações.

O estudo destes contos permite fazer uma justiça histórica a estas mulheres, além de trazer de volta seus ensinamentos. Espera-se que um dia o reconhecimento da produção cultural feminina ganhe a sua devida importância na cultura galega e brasileira, que, mesmo com um oceano a lhes separar, não são tão distantes quanto parecem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRIO, Maruxa; HARGUINDEY, Enrique. Contos populares. Galícia: Ed. Galaxia, 1983.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e Técnica, arte e política. São Paulo: ed. Brasiliense, 2000. 

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito.Org. por Betty Sue Flowers; Trad. de Carlos Felipe Moisés. São Paulo : Palas Athena, 1990.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo : Global editora, 2014.

CUBA, Xoán R. ; MIRANDA, Xosé; REIGOSA, Antonio. Dicionario dos seres míticos galegos. Vigo – Galícia : Edicións xerais de Galícia, 1999.

ESTÉS, Dra. Clarissa Pinkola.Contos dos irmãos Grimm. Trad. de Lia Wyler. Rio de Janeiro : Editora Rocco, 2005.

_______________________. Mulheres que correm com lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Trad. de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2014.

JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. de Maria Luiza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis – RJ : Editora Vozes, 2011.

___________. Símbolos da transformação. Trad. de Eva Stern; Revisão técnica Jette Bonaventura. Petrópolis – RJ: Editora Vozes, 2011.

LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. São Paulo : Editora Brasiliense, 1960.

VIEIRA, Yara Frateschi. Teia de tantos fios: a imagem da fiandeira na poesia galega. In: MALEVAL, Maria do Amparo Tavares.(Org.). Estudos Galegos. Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

1 Os ‘séculos oscuros’ compreendem o período do século XVI ao sXVIII , momento em que a língua galega limitou-se à esfera privada, e as produções literárias escritas em galego foram escassas.
2CUBA, Xoán R. ; MIRANDA, Xosé; REIGOSA, Antonio. Dicionario dos seres míticos galegos. Vigo – Galícia : Edicións xerais de Galícia, 1999.

Congressos de Estudos Galegos em Buenos Aires e Salvador

Entre os dias 6 e 8 de abril teve lugar em Buenos Aires o XI Congreso Internacional da Asociación Internacional de Estudos Galegos. A Asociación Internacional de Estudos Galegos (AIEG) nasceu na década de 1980 na costa leste dos Estados Unidos, onde vão ter lugar os seus três primeiros congressos. O primeiro deles organizado em 1985 na Universidade de Maine-Orono e o segundo na Universidade de Brown em 1988. Após a terceira edição em 1991, na Universidade da Cidade de New York, o congresso  vai em 1994 por primeira vez à Europa, à Universidade de Oxford. A partir desse ano, os congressos serão cada três anos. Das terras anglófonas continuaram alternando sedes em América Latina e europeas até a atualidade: Trier (1997), La Habana (2000), Barcelona (2003), Salvador (2006). O IX Congresso foi por primeira vez na Galícia em 2009 (A Coruña, Santiago de Compostela e Vigo). Já no 2012 foi em Cardiff e, neste ano 2015, em Buenos Aires.

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Neste Congresso esteve representado o Programa de Estudos Galegos (PROEG) da UERJ, através das palestras dos seguintes pesquisadores:

–  Da Península Ibérica para o Brasil: uma análise comparativa entre os contos populares galegos e brasileiros | Fernanda Gappo Lacombe

– A identidade lingüística dos galegos e galegas na emigración americana | Denis Vicente Rodríguez

– Unha achega á intrahistoria dos Premios do Centro Galego de Buenos Aires. Un proxecto de alén mar para Galicia | Denis Vicente Rodríguez junto com Malores Villanueva Gesteira

– Do Grande Milagre jacobeu ao Auto da compadecida de Ariano Suassuna: aspectos da transculturação ocorrida | Maria do Amparo Tavares

Mais informação em: http://www.crtvg.es/rg/destacados/diario-cultural-diario-cultural-do-dia-07-04-2015-1069983

Teve lugar também nas últimas datas, entre os dias 13 e 15 de abril, o I Encontro Brasileiro de Estudos Galegos em Salvador. Organizado pelo Centro de Estudos da Língua e Cultura Galega (CELGA), em comemoração ao seu 20º aniversário de fundação e ao 40º aniversário da criação do Centro de Estudos Galegos (CEG), e como homenagem à sua fundadora, a professora Rosário Suárez Albán. Este encontro aconteceu na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e teve como objetivo intensificar o diálogo intelectual entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros de diferentes universidades, que se dedicam aos estudos galegos.

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Neste Encontro esteve também representado o PROEG da UERJ, através das palestras:

– Da Península Ibérica para o Brasil: uma análise comparativa entre contos populares galegos e brasileiros | Fernanda Gappo Lacombe

– Desafios e conquistas da televisão pública galega como meio de divulgação da língua | Gabriel Pereira Kaizer

– A poesia do olhar medieval | Thayane Gaspar Jorge

As actutudes sobre a lingua galega na mocidade. O IES A Sangriña da Guarda | Denis Vicente Rodríguez

Mais informação em: http://www.crtvg.es/informativos/primeiro-encontro-brasileiro-de-estudos-galegos-1089219

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De esquerda a direita: Fernanda Lacombe, Thayane Gaspar, Denis Vicente e Gabriel Kaizer

Os contos populares galegos e brasileiros

Fernanda Lacombe

Aluna de Literatura Galega II na UERJ

Há quem acredite que a primeira invenção do homem foi a arte de contar histórias. Antes que a ciência se desenvolvesse e fosse capaz de explicar os fenômenos da natureza, os homens criaram histórias que o fizessem. Em seu famoso texto, “O narrador”, Walter Benjamin prevê um futuro negro para a contação de histórias.Felizmente, as previsões de Benjamin não se realizaram: a informação encontrou seu ápice no século XXI, mas não foi capaz de substituir os contos de fadas, histórias populares ou a simples narrativa de um caso que presenciamos no ônibus.

No livro, O poder do mito, o estudioso de mitologia Joseph Campbell ressalta a importância do mito para a sociedade. Segundo o autor, os mitos são uma forma de inserir os jovens mo mundo adulto e dentro de suas regras. Se nas sociedade primitivas havia rituais de passagem, atualmente as histórias se encarregaram deste papel, e por isso sua importância. A partir deles é possível compreender os códigos que regem este mundo, além de encontrar exemplos de como resolver suas próprias questões pessoais.

Obviamente, os contos populares galegos não poderiam ser diferentes. Em 1983, os escritores Maruxa Barrio e Enrique Harguindey publicaram Contos Populares, uma antologia de contos populares galegos. Nas palavras de Barrio, na introdução da obra, ” Hai nestas historias algo moi importante do nosso modo de ser e da nossa maneira de pensar(…)No fondo, faláse de todos nós.”. A autora também relembra o valor social destes contos, afinal, durante muitos séculos foram a única forma de literatura a que teve contato a população rural.

No Brasil a situação não é diferente.Durante séculos a população analfabeta se viu excluída da literatura da elite. Mas produziu dentro de seu bojo contos de valor inestimável para a cultura do país. Talvez seja este o grande trunfo dos contos de tradição oral : são acessíveis a qualquer nível de instrução, pois dependem apenas de habilidade humana natural de contar histórias

Ao longo deste trabalho, serão analisados três contos da antologia de Barrio e Harguindey. Lembrando que o livro é dividido em três partes : contos de animais, sobre a vida da gente galega e , por último, de encantamento. As narrativas escolhidas estão contidas na terceira parte. O critério para a escolha foi a existência de uma versão similar destas histórias nas antologias de contos populares brasileiros. Serão levantados os principais elementos do enredo e particularidades na versão galega com relação a de outros países e línguas.

Contos populares galegos, de Enrique Harguindey e Maruxa Barrio

O primeiro O afillado da morte, também é encontrado nas coletâneas dos irmãos Grimm e em antologias de folclore brasileiro. Na narrativa, um homem pobre sai a procura de um padrinho para o filho recém-nascido. No caminho, encontra primeiro com o diabo, que o homem rejeita. Em seguida, encontra com Deus, que também se oferece como padrinho da criança. O pai não aceita, respondendo que ” vostede tampouco me vale que non é moi bo, pois a uns dálle-lo todo namentras que a outros non lles da nada se non son traballos”. Por fim, o homem segue caminhando ate encontrar a morte. Esta faz como os outros e é aceita , pois : ” E xusticeira: tanto leva aos probes coma aos ricos, que todos somos filllos da morte”. Esta fica tão satisfeita, que promete tornar rico seu afilhado.

E assim o faz. Quando o menino já está crescido, faz dele médico sem estudos: sempre que entrar no quarto de um doente e a morte estiver próxima a cabeça do paciente, não há remédio: se , porém, ela estiver aos pés dele, basta algumas ervas e ele irá sobreviver. E assim o rapaz começa sua carreira da médico , acumulando muito dinheiro. Um dia porém , um homem muito rico bateu em seu consultório. A morte se postou a sua cabeça, mas ao ver a fortuna oferecida pela família , o médico enganou sua madrinha: virando o paciente, colocou seus pés próximos da morte.O home foi salvo. O afilhado, porém, não teve a mesma sorte. A um aceno do padrinho, caiu morto ali mesmo.

Este conto apresenta alguns detalhes interessantes, principalmente em suas versão galega. Tanto para os Grimm quanto para os brasileiros, existe uma justificativa das ações de Deus. Logo após rejeitá-lo, o autor explica que o homem não tem consciência dos motivos de Deus, e por isso se comporta daquele jeito. Na narrativa galega não: Deus é equiparado ao diabo, e esta passagem é uma crítica e um alerta a cerca das condições de vida da população rural. A escolha da morte como madrinha não deixa de ser significativa. Para um povo abandonado pelas elites e até pela religião, a morte é a única figura justa e familiar. Tanto o homem deste conto quanto qualquer camponês estão acostumados com a morte em seu cotidiano, fruto de má condição de vida.

Contos dos irmãos Grimm
Contos dos irmãos Grimm

O método de trabalho do filho também aponta para está questão : o único tratamento que usa são ervas, remédio típico do homem rural. Se estão não podem ajudar, então só resta esperar a morte. Outro detalhe peculiar é quanto a diferença entre os finais de cada versão. Tanto na alemã quanto na brasileira, o médico entra em conflito ao precisar curar a filha do rei, uma moça bonita que ele não deseja ver morta. Após enganar a madrinha , é levado por ela ao mundo dos mortos, onde arde a vela da vida de cada pessoa. O rapaz percebe que sua vela está muito pequena e pede que a madrinha acenda uma nova vela para ela. A morte finge que irá colocar o toco de vela em cima de uma nova, mas no último instante dá um jeito de apagá-la. O afilhado ingrato morre.

Ao contrário de outros povos, a narrativa galega é menos romântica: a dúvida do rapaz é por razões financeiras, não afetivas. Percebe-se que apesar de contar com elementos do sobrenatural, está história não se assemelha aos contos de fadas tradicionais: é apenas a história de um camponês preocupado com a melhora de vida. Os personagens deste conto não são ruins: o pai que rejeita o diabo mostra isso. Mas desejam sobreviver e de modo confortável, como os ricos que conhecem. A única força do mundo que age sobre suas vidas é a morte. São os filhos dela. Mas, como todo ser humano, são incapazes de enganá-la.

O segundo conto a ser analisado é um dos mais peculiares da coletânea: Conto da cachaporra narra a história de um menino que nasce com força e tamanhos descomunais para sua idade. O concello da cidade decide então lançá-lo ao mundo, com alguns itens de sobrevivência: catorze quartos de vinho, um porco e uma bengala (cachaporra) de dezesseis quilates. O garoto segue seu caminho e topa com alguns tipos curiosos: Arrasalumbeiro, Arrancapinos e Sorberríos, cujos nomes já explicitam suas habilidades especiais. Os quatro passam a viver juntos até que são atacados por um gigante que rouba sua comida.Até que o dono da bengala consegue arrancar uma de suas orelhas e se torna mestre do gigante.

Seu primeiro desejo é saber onde está a filha encantado do rei. Caso o gigante o desobedeça, ele roí a orelha decepada, até conseguir o que deseja. O rapaz vai até a princesa e consegue salvá-la. Em seguida, curam o rei, que trazia um piolho do tamanho de um carneiro na cabeça. Com a pele do piolho, fazem um pandeiro.

O da bengala volta a sua casa e descobre que o rei irá realizar uma festa. Ele então roi a orelha do gigante e pede roupas melhores do que as do próprio rei, além de cavalos magníficos. Na festa o pandeiro estava sendo tocado, e o rei promete que aquele que adivinhar de que material o instrumento é feito, casará com a princesa. O rapaz acerta e a rainha propõe outro desafio: deverá trazer gente capaz de comer o suficiente por uma semana.

O protagonista convida seus amigos, que acabam com a comida rapidamente. E assim, o da bengala se casa com a princesa.

A versão brasileira deste conto se mostra tão insólita quando a galega, com a diferença que ao invés do gigante há o personagem do saci, figura do folclore brasileiro. Nas pesquisas realizadas para este trabalho, a versão verde e amarelo desta história recebe o nome de Manuel-da-bengala e encontra-se no livro Histórias de tia Anastácia, de Monteiro Lobato. Ela chama atenção por contar com um herói pouco convencional: um home enorme, comilão e com amigos também pouco convencionais. Manuel não é o príncipe encantado. Não apresenta comportamento cavalheiresco : ou bate na cabeça do saci com sua bengala, ou rói a orelha de um gigante. Para os que leem o conto, também é difícil imaginá-lo como uma figura atraente.

Histórias de Tia Nastácia de Monteiro Lobato
Histórias de Tia Nastácia de Monteiro Lobato

Apesar disso, liberta a princesa, provando seu valor. E ao final, é justamente suas características peculiares que lhe possibilitam a vitória. Dentro da perspectiva de uma análise entre as duas versões, este conto se destaca. Não é difícil imaginar que tenha chegado ao Brasil através dos imigrantes portugueses ( que ouviram os galegos) ou dos próprios galegos, sofrendo algumas modificações posteriores. Inclusive, pode-se notar este gosto pelo insólito não convencional na narrativa popular galega e brasileira, como elemento comum entre as duas culturas.

O terceiro e último conto a ser analisado é O xogador e filla do demo.Neste caso específico, não foi encontrado exatamente uma versão brasileiro, mas um outro conto com uma passagem em comum. O protagonista do conto galego é um jogador inveterado que vende sua alma ao diabo em troca de mais algum dinheiro para seguir apostando. Após cinco anos, o homem deve voltar ao demônio para entregar sua alma. No caminho, encontra com uma senhora que lhe aconselha a conseguir a ajuda de uma moça que se banha num rio próximo dali. A moça pé Brancaflor, filha do diabo.

Após auxiliar o jogador em diversas provas impostas pelo demo, este percebe a intercessão da moça. Apesar de seu ódio, brancaflor e o jogador se apaixonam , decidindo em se casar e passar a noite juntos. Ao saber disso, o diabo decide matar ambos. Brancaflor então enche o quarto de saliva, de modo que quando o diabo bate a sua porta, a saliva responde e ele pensa se tratar da filha. A partir daí, Brancaflor e o jogador fogem juntos, numa perseguição que constitui o trecho em comum entre as duas versões.

Esta passagem, do quarto de Brancaflor, merece atenção especial. É sabido que contos de fadas surgiram em meio popular, e como eram contados por todos, apresentavam palavrões e o cotidiano da vida adulta, ao contrário de sua reprodução na atualidade. Porém, ao contrário de outras coletâneas, mesmo as que não são necessariamente destinadas ao público adulto, a contos populares apresentam a menção natural do sexo, sem nenhum tipo de disfarce. Assim como Brancaflor e o jogador, outros personagens de contos diversos decidem dormir juntos. A relação sexual não é descrita de forma explícita, mas a menção a elas ocorre sem pudor.

Este fato auxilia no entendimento do valor e da origem dos contos de fadas. Como diz Maruxa Barrio na introdução da obra, são histórias contadas por pessoas de diferentes idades. As versões atuais de coletâneas e antologias de histórias de encantamento tendem a infantilizar este gênero narrativo, eliminando parte do valor que teve em outros momentos históricos. São obras como contos populares que permitem uma análise dos contos mais detalhada e mais atenta para seu valor antropológico, e não somente como texto de fruição.

A partir da análise destes contos e suas versões americanas, percebemos a importância da tradição oral de contação de histórias. Tanto no Brasil, quanto na Galiza os contos populares consistem na forma de literatura de maior alcance popular, além de serem uma forma significativa de resistência da cultura, preservando os costumes e a memória do povo e , no caso específico da Galiza, foram também um meio de preservação da língua galega.

Referências
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia
BARRIO, Maruxa; HARGUINDEY, Enrique. Contos populares.Galaxia, 1983
ESTÉS, Dra. Clarissa Pinkola.Contos dos irmãos Grimm.Editora Rocco
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. 1998
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e Técnica, arte e política. São Paulo: ed. Brasiliense, 2000. BENJAMIN, Walter