A poesia do olhar medieval

Thayane Gaspar

Pesquisadora do Programa de Estudos Galegos

A lírica galego-portuguesa é conhecida pelas suas repetições tanto na forma quanto no conteúdo. Contudo, um elemento temático consideravelmente repetido como o “olhar”, explorado na Bíblia e em textos religiosos, parece querer mostrar algo a respeito da manifestação literária e seu contexto histórico. O presente trabalho busca analisar elementos nas cantigas que remetem ao olhar, e a função dos olhos nas cantigas de amigo e nas de amor, considerando o contexto para que os olhos tenham se tornado um motivo na lírica medieval. A partir de elementos que tocam a visão em algum nível como as lágrimas, os sonhos, a luz, e o amor à primeira vista, as cantigas são reinterpretadas demonstrando como o homem medieval ora é vedado pela repressão da Igreja Católica, ora consegue trazer sua essência à tona através dos “olhos”.

INTRODUÇÃO

O motivo dos olhos é um tema bastante usado pelos poetas para falar de amor desde a Antiguidade, pelo fato de os olhos serem considerados responsáveis pelo nascimento amoroso. Na lírica galego-portuguesa, esse motivo é recorrente sendo encontrado em 179 cantigas de amigo e cantigas de amor. Ora esses olhos são evocados como os olhos que choram, os olhos que não dormem, os olhos iluminados pela visão da amada, e também como os olhos que carregam a coita pela ausência dela. Geralmente, a ocorrência do tema do olhar é seguida pelas palavras “coraçom”, “coita” e “Deus”. O coração é o lugar onde o trovador guarda seu sofrimento e sentimento pela “senhor”, a coita é a consequência após o encontro visual e o impedimento de revê-la, e Deus é o culpado ou o responsável pela paixão que nasce entre os amantes.

O OLHAR NA SOCIEDADE MEDIEVAL

Não é por acaso que o olhar aparece como tema de um grande número de cantigas da lírica medieval. Segundo o historiador francês, Jacques Le Goff (Uma história do corpo na Idade Média, 2003), a visão foi o sentido mais predominante na Idade Média (foi nessa época em que a moda nasceu, e época também da invenção dos óculos). Para o imaginário daquela sociedade, cerceada pelo domínio e vigilância da Igreja Católica, os olhos faziam o trabalho de filtrar o bem e o mal (assim como a orelha e a boca), além de ficar na cabeça, lugar do corpo considerado nobre . Simbolicamente os olhos também estavam ligados ao coração, a segunda parte nobre do corpo humano.

A visão é considerada, por São Tomás de Aquino, o sentido mais espiritual e aquele mais apto para o conhecimento. A Igreja e seus preceitos cristãos vão atribuir à visão uma importância que começa na própria Bíblia. Por conta desse apreço em relação aos olhos, as lágrimas ganham sua relevância e são reaproveitadas pelo cristianismo que as transforma de um gesto de tristeza a um gesto de purificação, dando-lhes novo valor.

LÁGRIMAS

A sociedade medieval é feita de tensões: bem x mal, amor x morte, espiritual e carnal. O choro oscila dentro da tensão entre a carne e o espírito, significando tanto a renúncia à carne quanto a corporeidade de Cristo. O pranto é supervalorizado como forma de reduzir a quantidade de líquidos no corpo humano e a incitação ao pecado, evitando que esses líquidos sejam usados pelo corpo na sexualidade.

As lágrimas também vão representar a encarnação de Cristo no homem, Jesus chora em três episódios bíblicos em que as lágrimas terão uma interpretação positiva. Assim, as lágrimas serão um critério para a santidade (Le Goff, 2003) e representavam a fecundidade de origem divina. Chorar significava permitir que Deus passasse pelo corpo, mobilizado, para então atingir o divino.

Santo Agostinho em sua obra Confissões (398 d.c), discorre bastante sobre as lágrimas e dedicada dois capítulos especialmente a elas: “O conforto das lágrimas” e “As lágrimas negadas”. No primeiro, Santo Agostinho fala das lágrimas que chora pela morte de um amigo, e pergunta a Deus porque existe doçura nesse ato em meio à dor e adiciona: “Ou será que o pranto, que é amargo em si mesmo, se torna um deleite quando, pelo fastio, aborrecemos os prazeres que antes nos eram gratos?”, mostrando dessa forma o prazer e o conforto trazido pelo pranto.

Em “As lágrimas negadas”, o santo chora novamente pela morte, dessa vez de sua mãe, e vê suas lágrimas negadas por conta pela sua energia e pelo seu próprio coração. Entretanto, nessa passagem, Santo Agostinho se mostra preocupado com a interpretação que aquelas lágrimas poderiam ter sob outros olhos:

(…)E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem, que pudesse interpretar com soberba meu pranto.

E agora, Senhor, to confesso nestas linhas: leia-o quem quiser, interprete-o como quiser. E se alguém julgar que pequei nessas lágrimas, que derramei sobre minha mãe por alguns instantes, por minha mãe então morta a meus olhos, ela que me havia chorado tantos anos para que eu vivesse aos teus olhos, não se ria. Antes, é grande sua caridade, chore por meus pecados diante de ti, Pai de todos os irmãos de teu Cristo!”

Assim, as lágrimas apresentam um paradoxo e significam tanto fraqueza quanto uma reposta à devoção a Deus. E mais do que tudo, demonstra a sensibilidade e um certo prazer que havia no ato diante de situações amargas ao coração.

Para o professor e historiador Johan Huizinga, a receptividade, a facilidade de emoções, essa propensão às lágrimas são próprias da Idade Média. Por isso, em muitas cantigas nas quais aparece o termo “olhos”, há expressões comuns como por exemplo: “e choram olhos d’amor“, “chorando muito destes olhos meus”, destes meus olhos a coita que ham:choram e cegam, quand’alguém nom veem”

SONHOS

Outro tipo de visão passou pelo crivo e é codificação da Igreja Católica, a visão que enxerga o oculto e o futuro: o sonho. O sonho considerado “uma narrativa em que se vê” que consegue entrever uma verdade escondida. (Le Goff), e é demonizado pelo cristianismo por conta de sua origem pagã e por estar ligado ao submundo.

O cristianismo reconhece a universalização dos sonhos -todo homem sonha -, mas permitia apenas que a elite (reis e santos) sonhasse. O sonho era considerado perigoso, pois podia ser falso ou premonitório, e o futuro só poderia pertencer a Deus. A Igreja também ensinava que era durante a noite que a carne despertava palpitante, por isso o gesto do sonhador é codificado pela religião cristã e há a criação de normas sobre a posição ideal para se dormir, a fim de se evitarem os sonhos.

Santo Agostinho escreve no capítulo XXX de sua obra um relato chamado O sonho e a voluptuosidade, pedindo a Deus que aperfeiçoe nele a resistência aos seus sonhos que provocam prazeres através de lembranças:

Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante de mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em mim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação”

Ainda que a Bíblia contenha algumas passagens referentes aos sonhos, a sociedade medieval tinha seus sonhos controlados já que a forma corporal da tentação é a visão. Esse pensamento é refletido pelo baixo n de menções aos sonhos na lírica medieval galego portuguesa, apenas 5 cantigas (de servintês moral, escárnio e maldizer e de amigo). A cantiga de João Mendes de Briteiros, trovador de nacionalidade portuguesa do século século XIII , mostra o plano onírico como o único plano possível para a realização amorosa nesse exemplo:

Deus! que leda que m’esta noite vi,

amiga, em um sonho que sonhei,

ca sonhava em como vos direi:

que me dizia meu amig’assi:

“Falade mig’, ai meu lum’e meu bem”.

Nom foi no mundo tam leda molher

em sonho, nen’o podia seer,

ca sonhei que me veera dizer

aquel que me milhor que a si quer:
“Falade migo, ai meu lum’e meu bem”.

Des que m’espertei, houvi gram pesar,

ca em tal sonho havia gram sabor,

com o rogar-me, por Nostro Senhor,

o que me sabe mais que si amar:

“Falade migo, ai meu lum’e meu bem”.

E, pois m’espertei, foi a Deus rogar

que me sacass’aqueste sonh’a bem.

Nessa cantiga, a voz feminina se dirige a Deus e à amiga para narrar um sonho que a deixou muito alegre, ela sonhou que seu amigo demonstrou ter sentimentos recíprocos aos seus. Contudo, mesmo quando a voz feminina do eu lírico diz que ela foi a mulher mais feliz em sonho pela declaração do amigo, termina a cantiga falando do pesar que aquele sonho causou e roga a Deus que a tirasse daquele sonho por bem. Essa última cobra parece transformar o sonho, até mesmos os bons sonhos, em algo perigoso e a ser evitado. Nessa segunda cantiga de Briteiros, a conotação negativa da experiência onírica é reforçada:

Ora vej’eu que nom há verdade

em sonh’, amiga, se Deus me perdom,

e quero-vos logo mostrar razom,

e vedes como, par caridade:

sonhei, muit’há, que veera meu bem

e meu amig’, e nom veo nem vem.

Ca nom há verdade nemigalha

em sonho, nem sol nom é bem nem mal,

e eu nunca ende creerei al,

porque, amiga, se Deus me valha,

sonhei, muit’há, que veera meu bem

e meu amig’, e nom veo nem vem.

Per mim, amiga, entend’eu bem que

sonho nom pode verdade seer,

nem que m’er pode bem nem mal fazer,

porque, amiga, se Deus bem mi dê,

sonhei, muit’há, que veera meu bem

e meu amig’, e nom veo nem vem.

E, pois se foi meu amig’e nom vem,

meu sonh’, amiga, nom é mal nem bem.”

Nesse segundo exemplo, a mulher que sonha está confessando seu sonho irrealizado a uma amiga. Ainda que a voz feminina repita durante toda a composição que seu sonho não é mal nem bem, ela perde perdão a Deus por tê-lo sonhado. O sonho nessa cantiga parece fazer referência ao sonho que vê o futuro, o sonho premonitório, aquele que a Igreja não admite, pois prega que o futuro não pode ser conhecido pelos homens, apenas por Deus. Logo, a avaliação “bem e mal” não se refere ao sonho em geral, mas à premonição. Se o futuro visto em sonho não se realizou, aquele sonho não pode ser bom e nem ruim, perde seu rótulo de pecado, o sonhador se sente absolvido. Mas a voz parece agora acreditar, já que o sonho já foi há muito tempo sonhado e nada mudou na sua realidade, seu amigo não voltou. A irrealização agora a faz crer que os sonhos não podem ser reais, e que não o sendo, também não podem fazer mal a ela.

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Miniatura do Cancioneiro da Ajuda

LUME

O lume se encontre na lírica medieval por conta de duas conotações: a religiosa e a amorosa. No sentido religioso, a luz é citada em diversos textos bíblicos como essa afirmação na I Epístola de São João, 1,5: “Deus é luz”. Segundo a Bíblia, é a luz que garante as faculdades de ver e de conhecer. A teoria do astrônomo e matemático alemão, Johannes Kepler, afirma que há três luzes no mundo: Deus, o sol, e a alma humana.

Na conotação amorosa, a luz representa a ferida nos olhos causada pelo amor à primeira vista. No amor, a luz é um paradoxo, ela ofusca porque permite que se veja tanto, que já não dá mais para ver. O momento de luz é uma metáfora para o ápice do enamoramento.

Sendo assim, a luz se converte na metáfora da luminosidade do amado, a luz que faz os seres parecerem mais belos e os torna mais aptos para amar. Entretanto, a luz vai servir para representar também vida e morte. A vida é considerada um percurso de luz, então a morte é a escuridão, a perda do lume.

Até mesmo a sanidade será representada pela ausência ou presença de luz. Emprega-se palavras como lúcido e alucinado para se referir à loucura e à sanidade. A mesma coisa vale para a razão, o olhar e a luz se relacionam com a perspectiva da verdade, perder o lume é perder a razão.

Na cantiga de João Soares Coelho, trovador português do século XIII, a conotação amorosa da luz se faz presente:

Senhor e lume destes olhos meus,

per bõa [fé], direi-vos ũa rem;

e se vos mentir, nom me venha bem

nunca de vós, nem d’outrem, nem de Deus:

dê’lo dia ‘m que vos nom vi,

mia senhor, nunca despois vi

prazer nem bem; nen’o ar veerei,

se nom vir vós, enquant’eu vivo for,

ou mia morte, fremosa mia senhor;

ca estou de vós como vos en direi:

dê’lo dia ‘m que vos nom vi,

mia senhor, nunca despois vi

per bõa fé, se mui gram pesar nom;

ca todo quanto vi me foi pesar

e nom me soube conselho filhar.

E direi-vos, senhor, des qual sazom:

dê’lo dia ‘m que vos nom vi,

mia senhor, nunca despois vi,

nem veerei, senhor, mentr’eu viver,

– se nom vir vós ou mia morte – prazer!

A “senhor” amada pelo trovador nessa poesia possui a luz própria dos seres amados, porém nessa composição fica sugerida a ideia do amor que cega. “dê’lo dia ‘m que vos nom vi, mia senhor, nunca despois vi”. Não é o caso de uma cegueira como aquela quando o amor mostra tanto a ponto de ofuscar, mas ao contrário, sem a amada que é a luz dos olhos do trovador, ele não pode enxergar. Sem ver a amada, o trovador não vê mais nada, por isso ele precisa vê-la desesperadamente para acabar com sua cegueira, e caso ele não possa, ele prefere morrer, o que significaria dar as costas à luz.

Vejamos mais uma cantiga em que o lume está presente:

Que prazer havedes, senhor,

de mi fazerdes mal por bem

que vos quig’e quer’? E por en

peç’eu tant’a Nostro Senhor:

que vos mud’esse coraçom

que mi havedes, tam sem razom.

Prazer havedes do meu mal

pero vos amo mais ca mi;

e por en peç’a Deus assi,

que sabe quant’é o meu mal:

que vos mud’esse coraçom

que mi havedes, tam sem razom.

Muito vos praz do mal que hei,

lume daquestes olhos meus;

e por esto peç’eu a Deus,

que sab’a coita que eu hei,

que vos mud’esse coraçom

que mi havedes tam sem razom.

E se vo-lo mudar, entom

poss’eu viver [e] se nom, nom.

Na cantiga acima de autoria do rei D. Dinis, trovador português do ano 1261, pode se interpretar a ideia do amor como ferida dos olhos que se assenta no coração (Perez Barcala, 2004). Portanto, o trovador roga a Deus que tire de seu coração o amor que entrou pelos seus olhos, mas que durante a ausência da luz da amada e da própria amada, causa-lhe coita e mal. Outra noção que pode ser extraída nessa cantiga é a ideia filosófica da passividade do olhar. Segundo essa ideia a atividade de olhar estaria nas coisas e na luz, e não nos nossos olhos. Santo Agostinho (Confissões, 398 d.c) também insinua essa passividade:

“A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos, mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção. E ela se insinua tão fortemente que, se de repente me for tirada, a desejo, a procuro e, se sua ausência se prolonga, a alma se entristece.“

AMOR À PRIMEIRA VISTA

O amor à primeira vista é a tradução dessa crença existente desde a Antiguidade de que o amor nasce do olhar, e que é muito explorada na literatura medieval e pela sociedade medieval. Essa ideia dos olhos como agentes do amor foi registrada no Tratado do Amor Cortês de André Capelão do século XII. Em seu tratado, o autor busca refletir sobre o amor e estipular regras a respeito do amor nobre e elevado.

O amor é um tema recorrente na lírica medieval
O amor é um tema recorrente na lírica medieval

Para Capelão, os cegos seriam pessoas incapazes de amar porque não possuíam o sentido responsável pelo amor. Os olhos receberam essa função, pois foi atribuída a eles à ideia de sinceridade, da verdade, do conhecer o outro. Os olhos são as janelas da alma, porque ao mesmo tempo em que permitem que vejam o seu interior, também veem o exterior: uma dupla função. Significa que o olhar é ao mesmo tempo sair de si e trazer o mundo para dentro de si (CHAUÍ, 1997). Capelão ainda firma mais a conexão entre o amor e os olhos quando ensina em seu tratado o que é a paixão:

Pois essa paixão é inata, e te mostrarei com clareza, se estiveres buscando escrupulosamente a verdade, por que ela não nasce de ação alguma, mas apenas da reflexão do espírito sobre aquilo que vê. Isto porque, quando se vê que uma mulher é digna de ser amada e convém a seu gosto, o homem logo começa a desejá-la em seu coração; (…). (CAPELÃO, André. Tratado do Amor Cortês, p.8)

Nessa passagem, o autor demonstra porque a paixão nasce da visão, e ainda continua o trecho dizendo que o homem pode “ver”quando a mulher é digna de ser amada, sugerindo ainda que as características que compõem o amor são visíveis. No final, Capelão parece instruir o leitor ao caminho do amor: chega aos olhos, para só depois atingir o coração. Esse percurso pode ter sido aceito socialmente naquela época, porque como Frateschi mostra em seu artigo “Olhos e coração na lírica galego-portuguesa” é comum encontrar esses dois vocábulos se relacionando nas cantigas.

A ideia dos olhos como agentes do enamoranento também foi proposta por Platão, que ainda atribuía ao olhar o ato de autoconhecimento. Para Platão, quando olhamos alguém nos olhos, o nosso rosto é refletido neles, dando a impressão de que para conhecer a si próprio, deve-se olhar para outra alma. Daí a ideia de que o olhar no amor geralmente possui dois poderes. No artigo “Os amantes contra o poder” (RIBEIRO, 1997), esclarece-se que aquilo que os amantes veem quando se olham é o próprio ver, e que se “ver” está dividido entre o olhar que extraí e arranca prazer do objeto e o olhar que revela e entrega.

Aos olhos também pertence a eloquência, uma linguagem própria; e uma autonomia que independe do observador. No caso nas cantigas medievais é comum percebermos construções que demonstrem que o trovador é passivo no ato de olhar, e olhar a amada é algo que foge ao seu controle. Um exemplo disso são esses versos da cantiga de Airas Nunes, trovador provavelmente de origem galega, situado no séxulo XIII: “Mal dia forom meus olhos catar / a fremosura por que me matades!”. Então, a linguagem do olhar é uma sinédoque do ser que sente e sofre com eles (SOUTO CABO, 1988).

O olhar também carrega uma função poderosa que é a de realização e de irrealização. Quando não se quer ver algo, fecha-se os olhos como se esse gesto fizesse aquele objeto ou situação desaparecer. Provavelmente por isso os trovadores pedem insistentemente nas cantigas que possam ver a amada, pois não vê-las causa coita, e talvez uma certa ideia de irrealização da reciprocidade seu enamoramento.

Nas regras do Código do Amor Cortês no livro “Amor Sublime” (PÉRET, 1984), é expressa a regra de que o amor deve ser mantido em segredo, contudo em alguns tópicos o amor (abstrato) se torna visível aos olhos alheios. Um exemplo presente no item 15 do código que diz “Toda pessoa que ama empalidece à vista do que ela ama.” e o 16: “À visão imprevista de quem se ama, treme-se.”, o que equivale concluir que o amor, mesmo que secreto, provoca reações visíveis nos apaixonados, e mais uma vez, o amor se liga à visão.

No item 23 do código afirma-se que mal come e mal dorme aquele que ama, pois está sempre na companhia de pensamentos de amor. Assim, um exemplo disso é a cantiga de Bernal de Bonaval, trovador gaego do século XIII, cujo refrão e estrofe anterior a ele falam dos olhos impedidos de dormir porque ele se separará de sua amada é: “e des quand’eu ora de vós partir /os meus olhos nom dormirám.”    

E por fim o número 30, no qual a ideia do olhar e a memória do que se viu (a imagem) fica entendida na definição: “Uma pessoa que ama está ocupada assiduamente e sem interrupção pela imagem do que ela ama.”  Nessa cantiga de amor de D. Dinis, o trovador se mostra ocupado pela lembrança de quando viu sua senhor:” – Des que vos vi e vos oí falar, [nom]vi prazer, senhor, nem dormi, nem folguei.”

Por último, vale a pena refletir sobre uma incompatibilidade na história do olhar dentro da sociedade e da literatura medieval: por que há tantas menções ao olhar, à visão, se as características físicas nas cantigas são tão escassas? Numa sociedade de gestos artificiais, que foi ensinada a amar e admirar a Deus e não as coisas feitas por Deus, como o prazer estético se deixa ser tão explícito? Em “Confissões” esse parodoxo aparece: “Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas. Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus que criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas.” (Santo Agostinho, 398 d.c) e em D. Dinis ao contrário, agradece-se a Deus pela formosura da amada: “E porque vos fez Deus melhor de quantas fez e mais valer,”

Uma hipótese poderia explicar o porquê dessa importância do olhar mesmo quando este está sob as rédeas da Igreja e da repressão: porque se falava através do olhar quando havia silêncio e opressão. O olhar e sua longa história de fonte de sinceridade, verdade, e eloquência talvez não tenha ficado mudo durante a Idade Média. Poderia se supor que essa era a linguagem dos amantes, já que as “senhores” eram mulheres casadas e precisavam cumprir um papel, recitar uma fala socialmente aceita. Seguindo esse raciocínio, o desespero dos trovadores para olharem nos olhos da amada poderia ser uma forma de saber seus reais sentimentos por eles. Como afirmou Alfredo Bosi em seu artigo “Fenomenologia do olhar” (1997): “O olhar é linguagem da vontade e da força antes de ser órgão do conhecimento.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se entra em contato com a lírica galego-portuguesa a repetição de imagens, símbolos e lugares-comuns tende a remeter ao imaginário coletivo daquela sociedade fechada em si mesma e ao discurso religioso da Igreja Católica. Entretanto, não se pode ignorar que algumas repetições ganham significados quando se conhece a história que serviu de base para essa manifestação literária. A visão e elementos que a tocam como a luz, os sonhos, as lágrimas e o amor à primeira vista dentro de uma sociedade, em que alguns desses elementos vêm desde a Bíblia, oscilando entre valorações diversas e até paradoxais, instigam a curiosidade do leitor que se depara com um número significativo de suas ocorrências nas cantigas de amigo e de amor.

Além disso, é importante refletir como a visão, a estética, e apreciação do belo conviviam a repressão a qual o corpo sofreu pela Igreja que considerava o corpo impuro, um obstáculo entre o homem e Deus. E mais importante ainda, entender por que dentre todas as partes do corpo, os olhos não ficaram de fora quando se tratava de amor. Sendo assim, os olhos foram estimados por mostrarem o que havia de verdadeiro dentro do artificialismo em que homens e mulheres foram sujeitados, o que vale imaginar que aqueles olhos falavam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHAUI, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo.In: NOVAES, A. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


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Uma consideração sobre “A poesia do olhar medieval”

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