Días sen Gloria – Uma história de solidão a dois

Luísa Zanni Capitoni

Estudante de Literatura Galega II na UERJ 

Introdução
O presente trabalho almeja refletir sobre a obra do dramaturgo galego Roberto Vidal Bolaño e sobre sua importância para o cenário cultural galego a partir da análise de seu texto
Días sen Gloria. A peça teatral narra a história de um peregrino e uma prostituta que se unem em uma viagem rumo a Santiago de Compostela. Ele, buscando um milagre. Ela, um cavaleiro. Os motivos por detrás da busca de cada um só se revelam ao leitor no decorrer da narrativa, engendrada de forma meticulosamente coesa.

Bolaño aproveita a carga de humanidade que há em cada personagem e aposta nos anti-heróis para compor seu elenco literário. Nenhum dos protagonistas – ou outros personagens quaisquer – são o que se espera de um personagem com tamanho destaque. Não têm nada de honroso ou especial. À princípio, trata-se de uma jovem prostituta que busca alcançar um homem que lhe deve dinheiro, e um velho viajante – um embusteiro – conhecedor dos rumos e atalhos do Caminho.

Prescindindo de nomes, Ele e Ela são personagens não só completamente verossímeis – dada sua carga de humanidade – como reais. Certamente há peregrinos e prostitutas anonimamente traçando caminhos-de-santiago, ou coisa que o valha, por motivos escusos. Não há qualquer descrição física dos protagonistas. Nem sequer são nomeados. O olhar de ninguém os protagoniza. É justo o objeto de tamanho anonimato que salta aos olhos de Bolaño, e é sobre quem escreve, como se desse voz a quem nunca pôde falar.

Dono de uma crítica muito bem dosada, Bolaño guia seus protagonistas por rotas que vão ao encontro do questionamento da fé ou das razões que impulsionam a busca de cada personagem, e consequentemente à história e origem dos protagonistas, trazendo ao leitor o sentimento de que cada atitude e sentimento experimentado pelos personagens durante a viagem se justificam em algum motivo profundamente humano.

Resenha

Qualquer biografia de Vidal Bolaño, desde a mais superficial, aponta seu interesse pelo cinema. O próprio fato de a peça principiar-se pela cena derradeira, sem que a plateia entenda quem são os personagens ou porque Ela beija Ele, para em seguida matá-lo e lançá-lo ao mar, já é um recurso que, vindo de alguém com tamanha destreza e confessa influência cinematográfica, não pode ser visto como mero acaso.

Seu fascínio pela “narração de histórias com personagens em movimento”¹ é traço nitidamente observado na obra em análise, Días sen Gloria, na qual os protagonistas percorrem regiões do Caminho de Santiago. Harambels, Mont de Marsan, Ostabat e Sauveterre são explicitamente mencionadas desde o princípio da história, tornando o Caminho de Santiago cenário e fio condutor do intrigante encontro que se dá entre uma jovem prostituta e um velho peregrino.

Ao momento do primeiro encontro, ambos dissimulam sobre quem de fato são. Ele finge ser um urso e, em seguida, um homem coxo e cego. Ela, protegida pelo anonimato da penumbra, omite ser uma mulher. Ela – até então descrita para o leitor e vista por Ele como “Voz”, e em seguida “Mozo” – demonstra seu interesse em ir a Santiago com “alguén capaz de facer o camiño con lixeireza para lle dar alcance a un cabaleiro” (Días sen Gloria, p. 12). Ele, ao sentir-se ofendido por ser julgado como incapaz de ajudá-la nessa empreitada, já que estava “coxo e cego”, mostra-lhe o que diz ser um milagre, e revela-se como realmente é: dotado de perfeita visão e capacidade de caminhar normalmente. Em um cenário de fina ironia, Ela, que no decorrer do livro se mostrará descrente nos milagres, sarcasticamente diz-lhe:

Abofé que é bo o milagre. Aínda que, como todo na vida, pode ser mellorado. Que lle parece estoutro?”

Em seguida, tira o chapéu e revela-lhe tratar-se, em verdade, de uma mulher.

Este primeiro encontro descrito a poucas páginas do começo do livro já traz ao leitor o primeiro esboço de personalidade dos protagonistas. Um velho embusteiro e uma prostituta sarcástica, ambos disputando esperteza sob pena de serem passados para trás pelos ardis do caminho. Bolaño parece mostrar-nos que é necessário astúcia para sobreviver por conta própria quando não se tem ninguém para servir de apoio e proteção.

Fefa Noya foi a responsável pela direção da montagem de Días sen Gloria realizada em 2013, no Centro Dramático Galego – ano em que o autor foi o homenageado do Dia das Letras Galegas. Em entrevista, a diretora chama atenção para o fato de Bolaño escrever uma obra “sobre o Caminho de Santiago evitando a conotação religiosa do Caminho (…), falando de que a Gloria (…) talvez não esteja tanto no céu, talvez não esteja tanto no sentimento sacro da vida, senão em sentimentos e experiências mais cotidianas, mais do dia a dia, como pode ser o amor”. Depois de certa insistência por parte dela, acabam seguindo juntos pelo caminho, e inevitavelmente acabam conversando, trocando experiências e opiniões, mas sem jamais demonstrar qualquer afeição.

Quase na metade do livro, Ele faz, pela primeira vez, menção a um desejo de beijá-la. Pergunta-lhe quanto custa seu beijo, e logo na cena seguinte pensa em beijá-la enquanto está adormecida, para em outra cena mais a frente insistir novamente sobre beijá-la, ao que ela reage com um “xeonllazo na entreperna” (Días sen Gloria, p. 32). A astúcia e o sarcasmo são traços profundamente marcados na personalidade desta mulher. Roi Vidal Bolaño, dramaturgo e filho do autor, afirma ter se dado conta, depois de uma profunda análise da obra de seu pai, de que a falta de protagonismo feminino em suas produções literárias está diretamente ligada à “uma característica que tinha ele, de analista da sociedade”. O filho comenta que ainda hoje a mulher não conquistou plenos direitos, o que corrobora com o pioneirismo delegado a seu pai em diversos aspectos. A falta de protagonismo das mulheres em sua obra – é dizer, a presença de mulheres tão vinculada à ideia do anti-heroi, e jamais à uma mulher bem sucedida, numa sociedade justa e mais ficcional do que qualquer literatura – é, no fim, um reflexo da falta de protagonismo das mulheres na sociedade em que viveu Bolaño (e na qual ainda vivemos nós). “Um dos traços de sua obra é, um pouco, dignificar estes personagens que estão fora da sociedade. E com as putas também o faz”, diz seu filho, sobre o tema.

Fazendo jus ao título, a glória escapa aos personagens da história, tanto os protagonistas como aqueles a quem encontram pelo caminho. A certa altura, encontram um Malferido, que diz-lhes:

Gárdense de morrer dun espadazo incerteiro. E mais se é na cabeça. É unha desdita que non desexaría nin para o peor dos meus inimigos. O sangue vai callando nos ollos e chega um momento en que un non pode abrirlos e ten que andar ás apalpadas para acertar co camiño de volta. A morte faise de rogar e o siso vai fuxindo aos pouquiños, ata non saber se xa se é alma em pena ou se aínda se é vivo. Que dirían que son eu?”

Este cenário de lutas e esta atmosfera de rivalidade constante permeiam todo o caminho e cada personagem, mas a fé reaparece, singela, servindo de contraponto. Conclui o Malferido, depois de tanta desdita: “Que o Apóstolo lles dea boa viaxe”.

A este respeito, sabe-se dEle a absoluta devoção sobre o Apóstolo e dEla, a completa descrença em milagres. Há passagens que ratificam estes rasgos de personalidade. Ela reage com sua descrença a um pai que, cego pela fé, crê que o balbuciar de seu filho que antes não fala é um milagre operado pelo Apóstolo. Diz Ela: “Se iso é un milagre, o Apóstolo deve estar cocheando (…). Posto a lle devolver a fala ben pouido ensinarlle a usala”. Ofendido com tamanha descrença, Ele se cala e a ignora quando a viagem toma prosseguimento. Bolaño, após a apresentação desta situação, tem o pretexto perfeito para que Ela conte sua história – o momento em que a personagem revela os motivos de todo seu jeito de ser, de todos os seus objetivos, de toda a sua descrença. Ela revela então que a própria mãe “se tivo que pór ao oficio” para livrá-la da fome, e questiona onde estava tão poderoso Apóstolo nos momentos em que ela e sua mãe tanto necessitaram. Aponta que quem denunciou a mãe por “heresia” foi um frade, o que encerra sua argumentação para dizer a Ele: “non me diga a quen lle debo ou non ter fe”. Bolaño ousa ressaltar a incoerência de se depositar uma fé cega sobre um santo que, aos olhos dela, se abstém de ajudar até mesmo os seus maiores devotos.

Em contraponto, já no capítulo XI, “nunha praza de Sahagún” (p. 41), encontram-se com o Xogar, que narra uma parábola sobre dois homens que fizeram um pacto de irem juntos até Santiago de Compostela, e quando o mais velho dos dois morre, o mais novo sente-se impelido a cumprir a promessa e carrega o corpo do amigo que, por obra do Apóstolo, volta à vida. Ele pede que o Xogar conte a Ela de quem se tratam os personagens da história contada. E então é revelado o motivo de tamanha devoção do velho peregrino: os dois “amigos” eram seu pai e seu avó, tendo sido este devolvido à vida graças à uma obra do Apóstolo Maior. Salta aos olhos, ainda, que “nun lugar, abrigado do nordeste” (p. 44), Ela remexe na bagagem dEle e finalmente descobre que o que ele guardava por detrás de um pano branco era o corpo de uma mulher morta, a quem logo deduz ser Galiana, a moça a quem descobriram estar morta quando visitaram um prostíbulo, em certo ponto da viagem. Ela entende, enfim, que Ele já pretendia percorrer o Caminho de Santiago de qualquer forma, com o intuito de devolver à vida Galiana, tal como seu pai fizera com seu avô, por obra do Apóstolo. Com estas passagens, Bolaño justifica tanto a falta de devoção da jovem prostituta, como a fé inabalável do velho peregrino em Santiago, tornando-os absolutamente humanos, tão julgadores e tão passíveis de julgamento como qualquer pessoa literária ou “real”.

Depois de entrar em uma briga com o Cabaleiro que devia dinheiro à “rapaza”, Ele alcança tal grau de ferimentos e dor que acaba por pedir que Ela o mate. E a peça se encerra com a mesma cena que havia começado. “Deiteino na escuma do mar e deixei que se perdese nel como quería e nin tan sequer sei cal é o seu nome”, diz Ela. O nome dos protagonistas é guardado em anonimato até entre eles próprios, como se vê.

A rubrica que encerra o texto substitui o clássico “cai o pano” dos textos teatrais, e mantém a densidade que permeia todo texto: “A escuridade e o silencio apodéranse de todo”.

Considerações finais

O homem que reconheceu sempre ter querido ser cineasta deixou um imenso legado à dramaturgia galega e sua cultura, em geral. Bolaño não encarou a impossibilidade de fazer cinema – devido a um campo audiovisual/cinematográfico sem projeção ou perspectiva de projetar-se – como uma frustração, mas sim o teatro como missão, e inseriu em sua obra tantos elementos da sétima arte que admirava quantos fossem possíveis.

Com este afinco, envolveu-se não só na produção do texto teatral, mas foi ator (de clássicos galegos e internacionais, bem como de obras autorais), fundou companhias, dirigiu, ocupou-se da cenografia à iluminação de diversos espetáculos teatrais, e alguns projetos audiovisuais. Bolaño foi um verdadeiro militante cultural, cuja importância é comparada aos poetas do Rexurdimento. Suas peças escritas integralmente em galego ratificam o sentimento de pátria que este povo tem para com sua região.

Especificamente no que respeita à Días sen Gloria, Ela, remete, a seu modo, à Cândida Erêndira, personagem de García Márquez cuja própria avó forçou a prostituir-se. Muito embora as circunstâncias sejam diferentes, o cenário desértico e cheio de embusteiros do conto de García Márquez se aproxima, em algum ponto, ao Caminho de Santiago na peça de Bolaño. Além disso, Erêndira tem apenas a sua avó, como Ela, que tinha apenas a própria mãe, para servir-lhe de família ou qualquer coisa que o valha.

Em certo aspecto, Dias sen Gloria faz-me lembrar a peça musical A Ópera do Malandro, de autoria de Chico Buarque de Hollanda, livremente inspirado nA Ópera dos Três Vinténs, de Bertold Brecht, que influenciou também Bolaño, especialmente em A Ópera de a Patacón, inspirada no mesmo texto de Brecht. Lançando o foco da narrativa sobre personagens/pessoas a quem o foco é negado cotidianamente, o interesse dos três autores – Chico, Bolaño e Brecht – se encontra, seja para falar de mendigos, malandros, putas ou embusteiros. A sacudidela que obras desse calibre provocam na sociedade não tem intenção de ser menos ácida do que é.

O texto de Bolaño tem por cenário um caminho conhecido por ser traçado por devotos, mas seu autor incute à ele todo um discurso de profunda crítica – inclusive à igreja como instituição –, e nos propõe um olhar mais atento àquelas “personagens” tão à margem da sociedade. Feliz ou infelizmente, o fato é que sua obra é atemporal.

Referências
BOLAÑO, Roberto V. “Días sen Gloria”. Santiago de Compostela: Positivas, 2013.

MARQUEZ, Gabriel G. “A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada”. Rio de Janeiro: Record, 1972.

https://www.youtube.com/watch?v=0JAbGVF9Weg

http://robertovidalbolano.org/biografia/

http://robertovidalbolano.org/works/a-opera-de-a-patacon/

http://www.centrodramatico.org/imxd/obras/doc/1364834784Dias_Sen_Gloria_Caderno_Pedagoxico.pdf

Uma consideração sobre “Días sen Gloria – Uma história de solidão a dois”

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